sexta-feira, 12 de outubro de 2018

Os peregrinos e o amor

O caminho de Santiago de Compostela, por incrível que possa parecer, é um lugar de encontros, ou melhor, de paquera.

Três são as categorias dos enamorados por aqui: os que já encontraram a alma gêmea e buscam uma comunhão derradeira antes do casamento; os peregrinos que procuram o amor e ainda não o encontraram; e por fim aqueles que já amaram, casaram-se ou não, e se desiludiram ou buscam restabelecer sua liberdade.

A fadiga da marcha e a transformação de todos em peregrinos torna a tarefa da paquera mais simples. A cidade é cruel com os que não se comportam como modelos ou com aqueles que não são musculosos, magros, belos, etc. Por isso, a condição de caminhante, peregrino é um forte equalizador. E como amar alguém senão numa situação de igualdade?

Mesmo no local religioso onde me encontro, penso nunca ter sido tão paquerado em minha vida, desde olhares que  acompanham, tentativas de comunicação em diversas linguas, perguntas banais sobre a vida e o trajeto. Mulheres e homens que teriam idade para serem minhas mães ou pais me trazem aos olhos a constatação que envelheci, já pareço um desiludido do amor como eles, já não carrego em mim aquela despreocupação pueril da adolescência, que impediria essa aproximação mais amadurecida.

Sou simpático com todos. Mas digo que, como Rilke, estou aprendendo a amar a minha solidão.

ps: hoje garoa na cidade de Santiago

Santiago de Compostela,
12 de outubro de 2018
Rafael

descubrimiento

yo he descubierto
la hambre y la esperanza,
como un chico, como um pequeñito
mirando la face de dios
en la face de los hombres.

hemos perdido mucho,
hemos perdido la capacidad
de amar, de encanto, de sufrir,
hemos perdido el mundo,

como un perro
perdido en las calles,
vaga, mira, busca,

yo recuerdo de Él,
como un demonio arrepentido.

quarta-feira, 10 de outubro de 2018

Do esquecimento da condição humana

A condição humana é marcada pela inevitabilidade da morte, pela submissão à temporalidade e a um estado de falta perpétuo.

Levando a sério o que nos contam os mitos gregos, foi a τέχνη, a techné, a primeira condição para podermos enfrentar tal condição. Quando Prometeu roubou o fogo do Olimpo e o entregou aos homens, juntamente à capacidade técnica e ao fogo, ele nos deu uma coisa a mais: " as esperanças cegas", as "τυπλας ελπιδασ".

Assim, pelas realizações técnicas os homens poderiam idealizar uma vida, produzir diversas novas coisas iguais, levando-os a esquecer da sua própria condição mortal.

Aquele que nunca se animou tanto com alguma realização sua, chegando a esquecer de sua própria condição humana, a sua condição mortal, ele que atire a primeira pedra!

Eis a razão de um dos exercícios espirituais(encontrado, por exemplo, nas meditações de Marco Aurélio) mais importantes do período helenístico: "ter a morte sempre presente aos olhos", para sempre se recordar da sua mortal condição.

O carpinteiro andaluz

o carpinteiro andaluz
produz estantes
onde sonhos são postos,
desejos são próximos,
e o medo é distante.

nas noites obscuras,
de céus tão compridos
e estrelas pequenas,
agarra-se ao trabalho
devotamente, a madeira
é mais sincera que o homem,

nela, a cada talho,
em cada cadena,
há um chorar da natureza,
diz o andaluz carpinteiro,
há um penar a cada mesa,
a cada abertura, na noite.

os céus são amplos,
deus pequenino,
e sozinho, ralhando sonhos,
sabe que se encaminha
para a estante de deus

onde desejos são próximos,
os medos são postos,
e o sonho é distante.

quinta-feira, 4 de outubro de 2018

Não quero a mulher que passa

A M.

Não quero a mulher que passa,
Mas a que fica, que permanece,
Quero da boca a língua, a lava,
Quero do corpo o dom que aquece,

Não quero mesmo uma passante,
Bela e ligeira, lindo mistério,
Pois sou mais dado ao fulminante
E eterno amor, meu desidério;

Mas a ti quero, bem mais: desejo;
A ti que engraça o dia louro,
que é toda liça, mulher do douro;

Mulher poeta, não dês ensejo,
Pois se saudade há de ficar,
Será a lembrança do teu amar.


segunda-feira, 1 de outubro de 2018

Do homem de poema

É uma coisa estranha o amargo na boca
Na noite insone em que o fim se anuncia,
Mais um dia passa; e, se a vida esvazia,
É uma coisa estranha o gritar da voz mouca.

Sorrir tristemente um sorriso já besta,
E dizer um basta ao tempo anguloso,
Sorriso dos parvos é um livro guloso
Comendo a história, os homens em festa;

Mas apesar disto, das eras mesquinhas,
Da dor nas esquinas, da hora vadia,
Da guerra, da fome, da má valentia,
Dos homens que matam e violam em rinhas,

Apesar da tristeza e da falsa esperança,
Da solidão própria aos homens de poemas;
Da televisão, dos romances, cinemas,
Que contam paixões que não deixam lembrança;

Apesar de tudo, do século-guerra,
crianças famélicas nos rincões do mundo,
Das pobres angélicas, do sofrer profundo,
Apesar da loucura, da saudade fera,

É coisa estranha o amargo que deixa
A vida escoada dos mais lindos picos,
Descendo e tecendo riachos bem ricos,
Um amargo adoçado, um beijo  de queixa;


Mesmo que sejamos feitos pra partir,
Mesmo que sejamos de barro e ardil,
Mesmo com as rugas, com as figas, com o frio,
Mesmo que não haja o imortal elixir,

Mesmo tormentoso, traído, queixoso,
Há sempre o momento em que a luz aparece,
Sempre um ensolarado sorriso que aquece,
Sempre uma Diana, uma vista, um gozo,

Então, faço a prece ao meu deus que não existe,
E o crio tão lindo a cada rezar,
E digo aos homens do mundo o altar
É a vida da gente, beleza agreste,

Digo que apesar da tristeza terrena,
Viver é bonito ao homem de poema.