quinta-feira, 6 de dezembro de 2018

Nota sobre a modernidade poética


Poucos homens são dotados da capacidade de ver, menos homens ainda possuem a capacidade de se exprimir; porém, este homem, lançado sobre a folha de papel, sobre uma tela, procura, investiga, verifica, critica, busca, nesta época de mudanças inúmeras, de desordem mental – que também é riqueza pois é aquela onde existe “a livre coexistência em todos os espíritos cultivados das ideias mais dissemelhantes, princípios de vida e conhecimento opostos”(VALÉRY, 2014, p.19) -, que chamamos modernidade o eterno no transitório.  O Moderno, afinal, é sempre outro, é a modernidade que rompe consigo mesma, negando até mesmo a novidade, ela é heterogênea, autossuficiente, fundadora de sua própria tradição.
Os habitantes deste regime de historicidade de “estranheza radical” - que é crítica do passado imediato, sem ser tão-somente uma celebração do novo, mas ruptura – quando são artistas e, portanto, filhos críticos desta idade crítica, carregam sobre si mesmos o opressivo fardo de serem críticos de seu próprio fazer. São, afirmo, clássicos, no sentido que Paul Valéry atribui a Baudelaire: “Clássico é o escritor que porta um crítico em si mesmo, e que o associa intimamente aos seus trabalhos” (VALÉRY,2014, p. 239), e também associo a ideia do fazer em geral à noção de poesia como vinculação da arte com a vida. Afinal, como todo leitor de grego sabe, “poesia” deriva de ποίησις, verbo cujo sufixo -σις serve a formar nomes de ação – e não foi à ação que pretenderam as vanguardas surgidas nesses tempos de ruptura?
Se crermos em Octavio Paz, “para os surrealistas, o que contava não era tanto o poema, mas a poesia”. Mania de etimologia, já disse Francis Wolff, é uma mania romântica, mas se  Edward Said defende a etimologia como ultimo bastião do humanismo (ou humanitarismo literário), sinto-me justificado para poder afirmar que “poema” decorre de ποίημα, cujo sufixo -μα indica o resultado de uma ação. Poema é um objeto fabricado. E, para os surrealistas, segue Octavio Paz, “a poesia não era uma construção, mas uma experiência; não algo que fazemos, mas algo que alternadamente nos faz e nos desfaz, algo que acontece: uma paixão” (PAZ, 2013, p. 131). Esta percepção é nítida para qualquer um que se atreve a deleitar-se com Le Paysan de Paris, de Louis Aragon, cuja deambulação pela passagem da Opera ou a errância pelo jardim vincula-se a um ato, a uma experiência de revelação do insólito. Como diz Marie Claire Blancquart, sobre a Paris dos surrealistas, citada por Flávia Nascimento, “a Paris dos surrealistas é uma cidade não sociológica, sem densidade humana, que se volta inteiramente para a busca de uma intersecção entre o real e o imaginário, uma Paris que é transcendência e projeção” (ARAGON,1996, p. 27).
Transcendência, revelação, nesta terminologia mística, empregada pela poesia moderna, encontramos a religião secreta desta era. Onde o seu duplo-oposto é a revolução e onde a sua temporalidade é projetiva, lançada ao futuro, acelerada, como se fosse possível ver a face oculta redentora do progresso – aquela que as experiências do século XX nos mostraram sinistra, escuro, culminando num obscuro presenteísmo da mélancolie de gauche (Enzo Traverso). O que importa para compreender esta modernidade, essa busca do eterno no efêmero, é entender que o regime de temporalidade que o mundo de ontem de Zweig gerou – um mundo da permanência, da calma – foi o tempo da intensificação da mudança, da aceleração, da ruptura, da crítica de si mesmo, da revolução. Isso é nítido se comparamos o que diz Octavio Paz sobre a Vanguarda com o diagnóstico de Zweig sobre o seu tempo. Diz Paz: “Aceleração e multiplicação: as mudanças estéticas deixam de coincidir com a passagem das gerações e acontecem dentro da vida de um artista”( PAZ, 2013, p. 119). Diz Zweig em seu famoso prólogo: “Foi-nos dado participar ao máximo de tudo o que a história normalmente distribui com parcimônia por um único país, por um século apenas. Uma geração, quando muito, tomou parte numa revolução, a outra num golpe de Estado, a terceira numa guerra, a quarta numa crise de fome, a quinta na bancarrota de um país – e alguns países abençoados, algumas gerações abençoadas passaram ao largo de tudo isso. Mas nós, que hoje temos sessenta anos, e de jure ainda teríamos um tempo de vida à frente: o que nós não vimos, não sofremos, não experimentamos com agruras” (ZWEIG, 2014, p.15). A percepção da mudança adentrara firmemente na consciência do artista e do intelectual.
 Adentrara-se e adensara-se no crítico, pois a modernidade é “sinônimo de crítica e se identifica com a mudança”, não é a afirmação do princípio atemporal dos antigos, não é a eternidade dos cristãos, mas a crítica que destrói e renasce em direção ao futuro. Em relação ao cristianismo, ao agostinismo – em especial -, “o trabalho substitui a penitência; o progresso, a graça; e a política, a religião”(PAZ, 2013, p. 39)[1]. Pois é com a idade moderna que os poetas se dão conta de que escrever um poema é construir uma realidade à parte e autossuficiente. Inserindo a crítica na criação poética e, daí, tornando clássicos os artistas modernos.
A arte e a literatura moderna são as negações de si mesmas que para constituir-se em tradição, para continuar, devem negar-se. Trata-se da tradição da ruptura. “Todos tinham a consciência da natureza paradoxal de sua negação: ao negar o passado, eles o prolongavam e assim o confirmavam; nenhum deles percebeu que, ao contrário do romantismo, cuja negação inaugurou essa tradição, a deles a concluía. A vanguarda é a grande ruptura e com ela se encerra a tradição da ruptura” (PAZ, 2013, p.109). E a vanguarda, terminologia militaresca, daqueles que assumem a frente de seu tempo, assemelha-se ao romantismo na sua pretensão de unir a vida e a arte. Ambos são estética, linguagem, política, erótica, Weltanschauung, ação, são um modo de vida, um estilo.
O artista de vanguarda é o revolucionário que deu certo – mesmo quando se suicida. Pois mostra-nos o outro lado das coisas, o maravilhoso cotidiano, a realidade esplêndida da banalidade mutável. É Aragon, caminhando e observando um cabelo feminino num cabeleireiro, um ramo louro, e dele dizendo “Serpentes, serpentes, vocês me fascinam sempre”. É o sempre do corriqueiro, do banal. Neste sentido, a poesia e a revolução nutrem-se em afinidade e disputa: ambas são tentativas de romper o tempo do agora, “o tempo da história que é o da história da desigualdade, para instaurar outro tempo”. Porém, contrariamente à revolução, a poesia moderna, da vanguarda, não busca o depois do tempo, na linearidade dos fatos, busca o romper-se do tempo, para vincular-se ao eterno, à transcendência, ao tempo sem datas; mesmo que ela se alimente da oscilação entre “estes dois extremos: a tentação revolucionária e a tentação religiosa”.
Penso na figura do homem moderno de Baudelaire tendo a persona suave, erudita e doce de Jean D’ormesson sob os olhos. Que nomeia seus testamentos literários com o poema “Les Yeux et la Mémoire” de Aragon, que diz sobre o mundo de ontem de seus pais que “le passé y comptait plus que l’avenir”(D’ORMESSON, 2013, p.156), que conta suas aventuras, suas viagens, suas deambulações, sua vida au plaisir de dieu. Um escritor que é, ao mesmo tempo, um tradutor, um decifrador do mundo, deste mundo escrito em códigos, em signos, cuja analogia ruma ao infinito das leituras (uma festa para um homem cuja pátria é o texto, como diz George Steiner de si mesmo e dos seus). O poeta, o artista, o escritor moderno que possui um patriotismo furioso por sua época – como escreve Trotsky sobre Maiakóvsky, lamentando que este não tenha sido tão revolucionário, lamentando que se tenha suicidado, como ocorreu a tantos outros patriotas e desesperados pela sua época, como Benjamin, Zweig, et al – são os habitantes da pátria no tempo, no tempo da ruptura.
Por isso, mesmo quando abandona a vanguarda surrealista, Aragon pode afirmar “minha vida é escrever. Não para o teatro, isto é, um lugar que existia fora de mim. Mas sim para um teatro que é meu e está em mim. Onde eu sou tudo, o autor, o ator, o palco, onde não vendo nada a ninguém e sou meu próprio e único interlocutor”. Ele é seu próprio crítico. Ele é o crítico do revolucionário poeta que fora no poeta revolucionário que era. E sabe mais do que ninguém que o mundo é uma coisa estranha, que um dia o abandonaria sem dele tê-lo dito tudo, mas sobretudo que “Je dirai malgré tout que cette vie fut belle”. Eis a atitude do artista moderno sobre a atribulação dos dias, eis o eterno no passageiro.

Bibliografia:
ARAGON, Louis. Entretiens avec Francis Crémieux. Paris : Gallimard, 1964.
ARAGON, Louis. O Camponês de Paris. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
BURGER, Peter. Teoria da Vanguarda. São Paulo: Cosac Naify, 2012.
D’ORMESSON, Jean. Um jour je m’em irai sans en avoir tout dit. Paris : Robert Laffont, 2013.
PAZ, Octavio. Os Filhos do Barro. São Paulo: Cosac Naify, 2013.
VALÉRY, Paul. Variété I et II. Paris: Gallimard, 2014.
ZWEIG, Stefan. Autobiografia: o mundo de ontem. São Paulo: Zahar, 2014.


[1] Não foi Hegel quem disse que a leitura do jornal diário é a prece do homem moderno? E não foi Peguy, crítico da aceleração, mas também por isso propositor de rupturas, quem afirmou “qu’Homère est nouveau ce matin, et que rien n’est peut_être aussi vieux que le jornal d’aujourd’hui”?