Uma canção para o meu tempo – o nosso- há muito se escreveu.
Encontrei-a nas surpresas preparadas pela seqüência de causalidades da vida,
escolhas conscientes que me proveram de armas.Armas para um combate árduo. Em
tempo: para nós, que não pactuamos com os senhores do mundo, o combate é
imperioso!
Vagando, tal como os vagabundos vagam em busca de um prazer
fugaz num copo, num corpo, encontrei-me sem querer com Maiakovski impresso em
páginas de livro, museu adornado no qual – por covardia - matamos imediatamente
nossa intensa sede de justiça. Para minha surpresa, ele estava acompanhado.
Quem nunca ouviu a velha história? Do roubo da flor do
jardim? Da morte do cão? Do roubo da luz? Da descoberta do medo? Da voz
arrancada da garganta? Do silêncio. Do silêncio. Do silêncio... ?
“(...)Tu sabes,
conheces melhor do que eu
a velha história.
Na primeira noite eles se aproximam
e roubam uma flor
do nosso jardim.
E não dizemos nada.
Na segunda noite, já não se escondem:
pisam as flores,
matam nosso cão,
e não dizemos nada.
Até que um dia,
o mais frágil deles
entra sozinho em nossa casa,
rouba-nos a luz, e,
conhecendo nosso medo,
arranca-nos a voz da garganta.
E já não podemos dizer nada(...)”
Foi caminhando com Maiakovski que Eduardo Alves da Costa
entrou para a história da poesia contemporânea do Brasil. No entanto, por muito
tempo, devido a um equívoco na Epígrafe de um livro, em que era utilizado o
trecho que acima está colacionado, atribuindo o excerto a Maiakovski, Eduardo
Alves da Costa permaneceu como um dos poetas mais reproduzidos no Brasil, ainda
que anonimamente. Coisa que dizem diverti-lo.
Poeta alheio a fama, formado em Direito no Mackenzie em 1962
– ressaltando que “já não estava lá quando o Mackenzie ‘ empastelou’ a
Faculdade de filosofia, num retorno ao tempo dos hunos” -, compara a poesia com
a alquimia: tal como esta, “a poesia é o aumento das vibrações”.
Se não acredita nesta comparação, faça um experimento: leia
algum poema seu sem esboçar reação. Desafio quase impossível! Ou nos surge um
aperto no peito, ou um riso debochado, ou um grito que há muito queria sair,
mas não tínhamos coragem.
Misturando um impactante cunho social – não aquele rasteiro
de uma estética repetitiva, mas criativa, inventiva -, com uma linguagem que se
associa ao conteúdo de maneira intrínseca. Afinal, “ seja qual o ‘conteúdo’ que
o Poeta-Alquimista pretenda fazer chegar ao leitor ouvinte, deve
necessariamente decorrer do trabalho exercido sobre a linguagem, ou seja, das
associações, entrechoques, absorções, anulações, intensificações, enfim, todas
as reações manifestadas pelas palavras em confronto durante o processo
poético-alquímico”
E que maravilha não é ver o resultado a que chega nosso
alquimista. Transita com facilidade do poema mais incisivo contra a ordem
social burguesa, até um poeminha escatológico – que tira sarro do bom
comportamente exigido do citoyen.
O golpe de misericórdia me parece ser dado num poema
destinado ao seu tempo – mas que bem pode ser o nosso. O mundo não melhorou, ou
melhor, as manifestações mais agudas da crise civilizatória do Capital se
mostram cada vez mais explícitas. A social-democracia fracassou; a
desregulamentação dos mercados, que se seguiu à grande crise do modelo
econômico do pós-guerra, em 1973, produziu uma baixa da inflação ao custo de um
aumento do desemprego e da miséria gigantescos; o mundo árabe se contorce ao
cuspir e substituir déspotas mantidos pelo imperialismo. Agonizante, o mundo
pede socorro e as condições objetivas o exigem. O que pode ser pedido ao poeta
em tal situação?!
“Não peças ao poeta
uma canção discreta
num tempo de conquistas
e loucura.
Para a liberdade
ou para a morte
é que o mundo caminha:
e isto requer estrutura
Quanto te aproximas
segurando o copo, em pose estudada,
tenho vontade de te dar um murro
para que acordes no século vindouro
com a tua problemática suspirante.
Ah, meu pequeno, a tua vida!
Tua amada te traiu com teu melhor amigo,
não suportas o professor de estética
e teu pai não te deu o carro prometido.
Já não vais à Europa?
Tua vida é lixo
e teus dias se acrescentam à História
como o pipi que as crianças fazem na praia.
Queres um minuto de atenção para o teu soluço
e me agarras o braço
e insistes
e te aborreces quando não escuto
Espera... na tua agitação
deixaste cair uma gota de licor
na tua calça de flanela.
Aceitas um conselho?
Abandona de vez as festinhas de sábado
e lança teus nervos distendidos
até a outra margem
para que os outros,
os que vêm depois de ti,
encontrem passagem.”
(Eduardo Alves da Costa, Canção para o meu Tempo)
Sigo no caminho, com Maiakovski e Eduardo Alves da Costa