domingo, 11 de fevereiro de 2018

Avenida

na avenida, fuligens e foliões,
moças livres, moços rudes, bailarinos,
uns grotões desabrocham em meninos,
na avenida enternecida, confusões.

na avenida, tudo era colorido,
colusão, tribos, cores e canções,
mendicantes travestidos são barões,
nos cordões, onde o povo é bem-vindo.

carnaval, festim, banquete, folguedos,
em alegria, o povo ri em comunhão;
o embaraço de onde irmana a solidão,

abandona as casas, almas, e os sobrados.
rompe o bicudo e morno tempo de enfado
a procissão moldando um caos iluminado!

quinta-feira, 8 de fevereiro de 2018

Relato

Escreve o poema suspeito!
Há muito mais do que contar:
Há sonhos que foram desfeitos,
Há homens chegando do mar.

Escreve e descreve a urdidura,
Que os deuses não vão perdurar
Sem paz na violenta doçura,
De ouro o sangue foi brilhar.

Escreve, que a escrita é lembrança
Dos tempos da chuva e das guerras,
Já foi-se o tempo da bonança,
O tempo de plumas, panteras.

Escreve depressa, ligeiro,
Que o tempo parou no instante
E chega o homem traiçoeiro
Romper o sol indo ao poente.

Escreve: tomamos escravos!
Não para os submeter,
Não para fazermos conchavo,
Para aos deuses nos apender.

Escreve: punhal, coração,
Do homem já sacrificado,
O bumbo, tambor da oração
Que ainda não era pecado.

Escreve o sonho perfeito,
O nosso sonho assassinado,
O sonho que um novo sujeito
Julgou vil e ultrapassado.

Escreve e registra a derrota
Que um dia hão de perceber,
Se ainda havia outra rota,
Agora haverá perecer...



segunda-feira, 5 de fevereiro de 2018

Ainda no caminho, ainda Maiakovski


Uma canção para o meu tempo – o nosso- há muito se escreveu. Encontrei-a nas surpresas preparadas pela seqüência de causalidades da vida, escolhas conscientes que me proveram de armas.Armas para um combate árduo. Em tempo: para nós, que não pactuamos com os senhores do mundo, o combate é imperioso!

Vagando, tal como os vagabundos vagam em busca de um prazer fugaz num copo, num corpo, encontrei-me sem querer com Maiakovski impresso em páginas de livro, museu adornado no qual – por covardia - matamos imediatamente nossa intensa sede de justiça. Para minha surpresa, ele estava acompanhado.

Quem nunca ouviu a velha história? Do roubo da flor do jardim? Da morte do cão? Do roubo da luz? Da descoberta do medo? Da voz arrancada da garganta? Do silêncio. Do silêncio. Do silêncio... ?

“(...)Tu sabes,
conheces melhor do que eu
a velha história.
Na primeira noite eles se aproximam
e roubam uma flor
do nosso jardim.
E não dizemos nada.
Na segunda noite, já não se escondem:
pisam as flores,
matam nosso cão,
e não dizemos nada.
Até que um dia,
o mais frágil deles
entra sozinho em nossa casa,
rouba-nos a luz, e,
conhecendo nosso medo,
arranca-nos a voz da garganta.
E já não podemos dizer nada(...)”

Foi caminhando com Maiakovski que Eduardo Alves da Costa entrou para a história da poesia contemporânea do Brasil. No entanto, por muito tempo, devido a um equívoco na Epígrafe de um livro, em que era utilizado o trecho que acima está colacionado, atribuindo o excerto a Maiakovski, Eduardo Alves da Costa permaneceu como um dos poetas mais reproduzidos no Brasil, ainda que anonimamente. Coisa que dizem diverti-lo.

Poeta alheio a fama, formado em Direito no Mackenzie em 1962 – ressaltando que “já não estava lá quando o Mackenzie ‘ empastelou’ a Faculdade de filosofia, num retorno ao tempo dos hunos” -, compara a poesia com a alquimia: tal como esta, “a poesia é o aumento das vibrações”.

Se não acredita nesta comparação, faça um experimento: leia algum poema seu sem esboçar reação. Desafio quase impossível! Ou nos surge um aperto no peito, ou um riso debochado, ou um grito que há muito queria sair, mas não tínhamos coragem.
Misturando um impactante cunho social – não aquele rasteiro de uma estética repetitiva, mas criativa, inventiva -, com uma linguagem que se associa ao conteúdo de maneira intrínseca. Afinal, “ seja qual o ‘conteúdo’ que o Poeta-Alquimista pretenda fazer chegar ao leitor ouvinte, deve necessariamente decorrer do trabalho exercido sobre a linguagem, ou seja, das associações, entrechoques, absorções, anulações, intensificações, enfim, todas as reações manifestadas pelas palavras em confronto durante o processo poético-alquímico”

E que maravilha não é ver o resultado a que chega nosso alquimista. Transita com facilidade do poema mais incisivo contra a ordem social burguesa, até um poeminha escatológico – que tira sarro do bom comportamente exigido do citoyen.
O golpe de misericórdia me parece ser dado num poema destinado ao seu tempo – mas que bem pode ser o nosso. O mundo não melhorou, ou melhor, as manifestações mais agudas da crise civilizatória do Capital se mostram cada vez mais explícitas. A social-democracia fracassou; a desregulamentação dos mercados, que se seguiu à grande crise do modelo econômico do pós-guerra, em 1973, produziu uma baixa da inflação ao custo de um aumento do desemprego e da miséria gigantescos; o mundo árabe se contorce ao cuspir e substituir déspotas mantidos pelo imperialismo. Agonizante, o mundo pede socorro e as condições objetivas o exigem. O que pode ser pedido ao poeta em tal situação?!

“Não peças ao poeta
uma canção discreta
num tempo de conquistas
e loucura.
Para a liberdade
ou para a morte
é que o mundo caminha:
e isto requer estrutura

Quanto te aproximas
segurando o copo, em pose estudada,
tenho vontade de te dar um murro
para que acordes no século vindouro
com a tua problemática suspirante.

Ah, meu pequeno, a tua vida!
Tua amada te traiu com teu melhor amigo,
não suportas o professor de estética
e teu pai não te deu o carro prometido.
Já não vais à Europa?
Tua vida é lixo
e teus dias se acrescentam à História
como o pipi que as crianças fazem na praia.
Queres um minuto de atenção para o teu soluço
e me agarras o braço
e insistes
e te aborreces quando não escuto

Espera... na tua agitação
deixaste cair uma gota de licor
na tua calça de flanela.

Aceitas um conselho?
Abandona de vez as festinhas de sábado
e lança teus nervos distendidos
até a outra margem
para que os outros,
os que vêm depois de ti,
encontrem passagem.”
(Eduardo Alves da Costa, Canção para o meu Tempo)

Sigo no caminho, com Maiakovski e Eduardo Alves da Costa

Assombro

encontro na rua o poeta
amargo soturno ateu.
- para onde fostes, alegria?
murmura com tal agonia
que a rua espelha em covardia:
ai, deus,o poeta sou eu!

Solitários

névoa!
névoa e aridez,
rosto sulcado
na terra sofrida,
solidão anatômica,
crônica
rostos e imensidão.

aridez!
névoa e solidão,
corações montanhosos
no lamaçal recoberto,
trilhos aquosos,
maíz!

solidez!
solidão e festa
assombrada,
fendidos são os homens
e ofendido o país.

ébria!
realidade desleal.
grileiros e grilos,
latifúndio e patrões.
bichos temerosos
bebem e matam e amam
como homens.

os deuses já abandonaram,
destronaram o panteão
dos pássaros e pumas,
no píncaro de plumas
matou-se a comunhão.

murais comuns,
redenção campesina.
o buraco no rosto
é o vazio de ser.
homens antigos
como homens modernos.

solitária imposição
dos homens novos:
um Deus que não responde,
que se esconde e não ama
o homem.
um Deus erótico.

derrelitos lançados
morrem e vivem
atormentados
num carnaval.
ansiando
um novo deus:
sangue, tripas, corpo,
deus carnal