quinta-feira, 6 de dezembro de 2018

Nota sobre a modernidade poética


Poucos homens são dotados da capacidade de ver, menos homens ainda possuem a capacidade de se exprimir; porém, este homem, lançado sobre a folha de papel, sobre uma tela, procura, investiga, verifica, critica, busca, nesta época de mudanças inúmeras, de desordem mental – que também é riqueza pois é aquela onde existe “a livre coexistência em todos os espíritos cultivados das ideias mais dissemelhantes, princípios de vida e conhecimento opostos”(VALÉRY, 2014, p.19) -, que chamamos modernidade o eterno no transitório.  O Moderno, afinal, é sempre outro, é a modernidade que rompe consigo mesma, negando até mesmo a novidade, ela é heterogênea, autossuficiente, fundadora de sua própria tradição.
Os habitantes deste regime de historicidade de “estranheza radical” - que é crítica do passado imediato, sem ser tão-somente uma celebração do novo, mas ruptura – quando são artistas e, portanto, filhos críticos desta idade crítica, carregam sobre si mesmos o opressivo fardo de serem críticos de seu próprio fazer. São, afirmo, clássicos, no sentido que Paul Valéry atribui a Baudelaire: “Clássico é o escritor que porta um crítico em si mesmo, e que o associa intimamente aos seus trabalhos” (VALÉRY,2014, p. 239), e também associo a ideia do fazer em geral à noção de poesia como vinculação da arte com a vida. Afinal, como todo leitor de grego sabe, “poesia” deriva de ποίησις, verbo cujo sufixo -σις serve a formar nomes de ação – e não foi à ação que pretenderam as vanguardas surgidas nesses tempos de ruptura?
Se crermos em Octavio Paz, “para os surrealistas, o que contava não era tanto o poema, mas a poesia”. Mania de etimologia, já disse Francis Wolff, é uma mania romântica, mas se  Edward Said defende a etimologia como ultimo bastião do humanismo (ou humanitarismo literário), sinto-me justificado para poder afirmar que “poema” decorre de ποίημα, cujo sufixo -μα indica o resultado de uma ação. Poema é um objeto fabricado. E, para os surrealistas, segue Octavio Paz, “a poesia não era uma construção, mas uma experiência; não algo que fazemos, mas algo que alternadamente nos faz e nos desfaz, algo que acontece: uma paixão” (PAZ, 2013, p. 131). Esta percepção é nítida para qualquer um que se atreve a deleitar-se com Le Paysan de Paris, de Louis Aragon, cuja deambulação pela passagem da Opera ou a errância pelo jardim vincula-se a um ato, a uma experiência de revelação do insólito. Como diz Marie Claire Blancquart, sobre a Paris dos surrealistas, citada por Flávia Nascimento, “a Paris dos surrealistas é uma cidade não sociológica, sem densidade humana, que se volta inteiramente para a busca de uma intersecção entre o real e o imaginário, uma Paris que é transcendência e projeção” (ARAGON,1996, p. 27).
Transcendência, revelação, nesta terminologia mística, empregada pela poesia moderna, encontramos a religião secreta desta era. Onde o seu duplo-oposto é a revolução e onde a sua temporalidade é projetiva, lançada ao futuro, acelerada, como se fosse possível ver a face oculta redentora do progresso – aquela que as experiências do século XX nos mostraram sinistra, escuro, culminando num obscuro presenteísmo da mélancolie de gauche (Enzo Traverso). O que importa para compreender esta modernidade, essa busca do eterno no efêmero, é entender que o regime de temporalidade que o mundo de ontem de Zweig gerou – um mundo da permanência, da calma – foi o tempo da intensificação da mudança, da aceleração, da ruptura, da crítica de si mesmo, da revolução. Isso é nítido se comparamos o que diz Octavio Paz sobre a Vanguarda com o diagnóstico de Zweig sobre o seu tempo. Diz Paz: “Aceleração e multiplicação: as mudanças estéticas deixam de coincidir com a passagem das gerações e acontecem dentro da vida de um artista”( PAZ, 2013, p. 119). Diz Zweig em seu famoso prólogo: “Foi-nos dado participar ao máximo de tudo o que a história normalmente distribui com parcimônia por um único país, por um século apenas. Uma geração, quando muito, tomou parte numa revolução, a outra num golpe de Estado, a terceira numa guerra, a quarta numa crise de fome, a quinta na bancarrota de um país – e alguns países abençoados, algumas gerações abençoadas passaram ao largo de tudo isso. Mas nós, que hoje temos sessenta anos, e de jure ainda teríamos um tempo de vida à frente: o que nós não vimos, não sofremos, não experimentamos com agruras” (ZWEIG, 2014, p.15). A percepção da mudança adentrara firmemente na consciência do artista e do intelectual.
 Adentrara-se e adensara-se no crítico, pois a modernidade é “sinônimo de crítica e se identifica com a mudança”, não é a afirmação do princípio atemporal dos antigos, não é a eternidade dos cristãos, mas a crítica que destrói e renasce em direção ao futuro. Em relação ao cristianismo, ao agostinismo – em especial -, “o trabalho substitui a penitência; o progresso, a graça; e a política, a religião”(PAZ, 2013, p. 39)[1]. Pois é com a idade moderna que os poetas se dão conta de que escrever um poema é construir uma realidade à parte e autossuficiente. Inserindo a crítica na criação poética e, daí, tornando clássicos os artistas modernos.
A arte e a literatura moderna são as negações de si mesmas que para constituir-se em tradição, para continuar, devem negar-se. Trata-se da tradição da ruptura. “Todos tinham a consciência da natureza paradoxal de sua negação: ao negar o passado, eles o prolongavam e assim o confirmavam; nenhum deles percebeu que, ao contrário do romantismo, cuja negação inaugurou essa tradição, a deles a concluía. A vanguarda é a grande ruptura e com ela se encerra a tradição da ruptura” (PAZ, 2013, p.109). E a vanguarda, terminologia militaresca, daqueles que assumem a frente de seu tempo, assemelha-se ao romantismo na sua pretensão de unir a vida e a arte. Ambos são estética, linguagem, política, erótica, Weltanschauung, ação, são um modo de vida, um estilo.
O artista de vanguarda é o revolucionário que deu certo – mesmo quando se suicida. Pois mostra-nos o outro lado das coisas, o maravilhoso cotidiano, a realidade esplêndida da banalidade mutável. É Aragon, caminhando e observando um cabelo feminino num cabeleireiro, um ramo louro, e dele dizendo “Serpentes, serpentes, vocês me fascinam sempre”. É o sempre do corriqueiro, do banal. Neste sentido, a poesia e a revolução nutrem-se em afinidade e disputa: ambas são tentativas de romper o tempo do agora, “o tempo da história que é o da história da desigualdade, para instaurar outro tempo”. Porém, contrariamente à revolução, a poesia moderna, da vanguarda, não busca o depois do tempo, na linearidade dos fatos, busca o romper-se do tempo, para vincular-se ao eterno, à transcendência, ao tempo sem datas; mesmo que ela se alimente da oscilação entre “estes dois extremos: a tentação revolucionária e a tentação religiosa”.
Penso na figura do homem moderno de Baudelaire tendo a persona suave, erudita e doce de Jean D’ormesson sob os olhos. Que nomeia seus testamentos literários com o poema “Les Yeux et la Mémoire” de Aragon, que diz sobre o mundo de ontem de seus pais que “le passé y comptait plus que l’avenir”(D’ORMESSON, 2013, p.156), que conta suas aventuras, suas viagens, suas deambulações, sua vida au plaisir de dieu. Um escritor que é, ao mesmo tempo, um tradutor, um decifrador do mundo, deste mundo escrito em códigos, em signos, cuja analogia ruma ao infinito das leituras (uma festa para um homem cuja pátria é o texto, como diz George Steiner de si mesmo e dos seus). O poeta, o artista, o escritor moderno que possui um patriotismo furioso por sua época – como escreve Trotsky sobre Maiakóvsky, lamentando que este não tenha sido tão revolucionário, lamentando que se tenha suicidado, como ocorreu a tantos outros patriotas e desesperados pela sua época, como Benjamin, Zweig, et al – são os habitantes da pátria no tempo, no tempo da ruptura.
Por isso, mesmo quando abandona a vanguarda surrealista, Aragon pode afirmar “minha vida é escrever. Não para o teatro, isto é, um lugar que existia fora de mim. Mas sim para um teatro que é meu e está em mim. Onde eu sou tudo, o autor, o ator, o palco, onde não vendo nada a ninguém e sou meu próprio e único interlocutor”. Ele é seu próprio crítico. Ele é o crítico do revolucionário poeta que fora no poeta revolucionário que era. E sabe mais do que ninguém que o mundo é uma coisa estranha, que um dia o abandonaria sem dele tê-lo dito tudo, mas sobretudo que “Je dirai malgré tout que cette vie fut belle”. Eis a atitude do artista moderno sobre a atribulação dos dias, eis o eterno no passageiro.

Bibliografia:
ARAGON, Louis. Entretiens avec Francis Crémieux. Paris : Gallimard, 1964.
ARAGON, Louis. O Camponês de Paris. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
BURGER, Peter. Teoria da Vanguarda. São Paulo: Cosac Naify, 2012.
D’ORMESSON, Jean. Um jour je m’em irai sans en avoir tout dit. Paris : Robert Laffont, 2013.
PAZ, Octavio. Os Filhos do Barro. São Paulo: Cosac Naify, 2013.
VALÉRY, Paul. Variété I et II. Paris: Gallimard, 2014.
ZWEIG, Stefan. Autobiografia: o mundo de ontem. São Paulo: Zahar, 2014.


[1] Não foi Hegel quem disse que a leitura do jornal diário é a prece do homem moderno? E não foi Peguy, crítico da aceleração, mas também por isso propositor de rupturas, quem afirmou “qu’Homère est nouveau ce matin, et que rien n’est peut_être aussi vieux que le jornal d’aujourd’hui”?

segunda-feira, 19 de novembro de 2018

sexta-feira, 12 de outubro de 2018

Os peregrinos e o amor

O caminho de Santiago de Compostela, por incrível que possa parecer, é um lugar de encontros, ou melhor, de paquera.

Três são as categorias dos enamorados por aqui: os que já encontraram a alma gêmea e buscam uma comunhão derradeira antes do casamento; os peregrinos que procuram o amor e ainda não o encontraram; e por fim aqueles que já amaram, casaram-se ou não, e se desiludiram ou buscam restabelecer sua liberdade.

A fadiga da marcha e a transformação de todos em peregrinos torna a tarefa da paquera mais simples. A cidade é cruel com os que não se comportam como modelos ou com aqueles que não são musculosos, magros, belos, etc. Por isso, a condição de caminhante, peregrino é um forte equalizador. E como amar alguém senão numa situação de igualdade?

Mesmo no local religioso onde me encontro, penso nunca ter sido tão paquerado em minha vida, desde olhares que  acompanham, tentativas de comunicação em diversas linguas, perguntas banais sobre a vida e o trajeto. Mulheres e homens que teriam idade para serem minhas mães ou pais me trazem aos olhos a constatação que envelheci, já pareço um desiludido do amor como eles, já não carrego em mim aquela despreocupação pueril da adolescência, que impediria essa aproximação mais amadurecida.

Sou simpático com todos. Mas digo que, como Rilke, estou aprendendo a amar a minha solidão.

ps: hoje garoa na cidade de Santiago

Santiago de Compostela,
12 de outubro de 2018
Rafael

descubrimiento

yo he descubierto
la hambre y la esperanza,
como un chico, como um pequeñito
mirando la face de dios
en la face de los hombres.

hemos perdido mucho,
hemos perdido la capacidad
de amar, de encanto, de sufrir,
hemos perdido el mundo,

como un perro
perdido en las calles,
vaga, mira, busca,

yo recuerdo de Él,
como un demonio arrepentido.

quarta-feira, 10 de outubro de 2018

Do esquecimento da condição humana

A condição humana é marcada pela inevitabilidade da morte, pela submissão à temporalidade e a um estado de falta perpétuo.

Levando a sério o que nos contam os mitos gregos, foi a τέχνη, a techné, a primeira condição para podermos enfrentar tal condição. Quando Prometeu roubou o fogo do Olimpo e o entregou aos homens, juntamente à capacidade técnica e ao fogo, ele nos deu uma coisa a mais: " as esperanças cegas", as "τυπλας ελπιδασ".

Assim, pelas realizações técnicas os homens poderiam idealizar uma vida, produzir diversas novas coisas iguais, levando-os a esquecer da sua própria condição mortal.

Aquele que nunca se animou tanto com alguma realização sua, chegando a esquecer de sua própria condição humana, a sua condição mortal, ele que atire a primeira pedra!

Eis a razão de um dos exercícios espirituais(encontrado, por exemplo, nas meditações de Marco Aurélio) mais importantes do período helenístico: "ter a morte sempre presente aos olhos", para sempre se recordar da sua mortal condição.

O carpinteiro andaluz

o carpinteiro andaluz
produz estantes
onde sonhos são postos,
desejos são próximos,
e o medo é distante.

nas noites obscuras,
de céus tão compridos
e estrelas pequenas,
agarra-se ao trabalho
devotamente, a madeira
é mais sincera que o homem,

nela, a cada talho,
em cada cadena,
há um chorar da natureza,
diz o andaluz carpinteiro,
há um penar a cada mesa,
a cada abertura, na noite.

os céus são amplos,
deus pequenino,
e sozinho, ralhando sonhos,
sabe que se encaminha
para a estante de deus

onde desejos são próximos,
os medos são postos,
e o sonho é distante.

quinta-feira, 4 de outubro de 2018

Não quero a mulher que passa

A M.

Não quero a mulher que passa,
Mas a que fica, que permanece,
Quero da boca a língua, a lava,
Quero do corpo o dom que aquece,

Não quero mesmo uma passante,
Bela e ligeira, lindo mistério,
Pois sou mais dado ao fulminante
E eterno amor, meu desidério;

Mas a ti quero, bem mais: desejo;
A ti que engraça o dia louro,
que é toda liça, mulher do douro;

Mulher poeta, não dês ensejo,
Pois se saudade há de ficar,
Será a lembrança do teu amar.


segunda-feira, 1 de outubro de 2018

Do homem de poema

É uma coisa estranha o amargo na boca
Na noite insone em que o fim se anuncia,
Mais um dia passa; e, se a vida esvazia,
É uma coisa estranha o gritar da voz mouca.

Sorrir tristemente um sorriso já besta,
E dizer um basta ao tempo anguloso,
Sorriso dos parvos é um livro guloso
Comendo a história, os homens em festa;

Mas apesar disto, das eras mesquinhas,
Da dor nas esquinas, da hora vadia,
Da guerra, da fome, da má valentia,
Dos homens que matam e violam em rinhas,

Apesar da tristeza e da falsa esperança,
Da solidão própria aos homens de poemas;
Da televisão, dos romances, cinemas,
Que contam paixões que não deixam lembrança;

Apesar de tudo, do século-guerra,
crianças famélicas nos rincões do mundo,
Das pobres angélicas, do sofrer profundo,
Apesar da loucura, da saudade fera,

É coisa estranha o amargo que deixa
A vida escoada dos mais lindos picos,
Descendo e tecendo riachos bem ricos,
Um amargo adoçado, um beijo  de queixa;


Mesmo que sejamos feitos pra partir,
Mesmo que sejamos de barro e ardil,
Mesmo com as rugas, com as figas, com o frio,
Mesmo que não haja o imortal elixir,

Mesmo tormentoso, traído, queixoso,
Há sempre o momento em que a luz aparece,
Sempre um ensolarado sorriso que aquece,
Sempre uma Diana, uma vista, um gozo,

Então, faço a prece ao meu deus que não existe,
E o crio tão lindo a cada rezar,
E digo aos homens do mundo o altar
É a vida da gente, beleza agreste,

Digo que apesar da tristeza terrena,
Viver é bonito ao homem de poema.

domingo, 30 de setembro de 2018

Com seus dedos compassados

Com seus dedos compassados,
Circula a leve luva e faz sol,
Ré, mi, faz em minha pele lados,
Esquadrinha meus ângulos,

Escuridão. Voz, ressoa o bé-mol,
Artista da pele, da fome, refrão,
Seus olhos agudos, profundo rincão
De teu país inabitável e inóspito.

Pele, pelo, pulmão,
Língua, lábio, óbito
Da razão.

Súbita sibila arde
Núbia nívia, mar de
Perdição.

terça-feira, 25 de setembro de 2018

Desirée

Tu es la seule que je rencontre
Dans toutes ces heures inoubliables,
Tu es la seule, tu es l'aimable,
Je suis le seul qui peux t'aimer.

Comment aimer dans l'haïssable
Destin commun des pauvres hommes,
Tu me demandes, je te réponds,
Il faut aimer l'impitoyable,

Il faut sourir, il faut amener
Dans notre vie l'instant sécret,
L'instant douleur, l'instant ancré,

Et desirer qu'on ne s'accable.
L'amour pour nous n'est qu'une fable
Et tu es son coeur, ma Desirée.

sexta-feira, 14 de setembro de 2018

Redentora

No descampado da alma, uma fenda,
Abismo vil de dentes assanhados,
Terreno ermo, cinza, acabrunhado,
É o pecado. Exílio do homem, senda.

Nem todo homem vive atormentado
Pelo imenso e insondável espaço,
Por não poder chorar num outro abraço,
O seu exílio, o seu nefasto enfado.


Mas, creias bem, que é na selva escura
De outro alguém, n'outra mortal loucura,
Onde reside a impura salvação.

Se nem chegada ao meio-termo a vida,
Se o destempero é profunda ferida,
Já sou tal homem; sois minha redenção?

sábado, 8 de setembro de 2018

Psiquê

Amor, amor, loucura de Deus,
Cruel penitência humana doce
Toque amargo gosto claro puro ateu,
Amanheci amando.

Amor, seduziste a alma, alegre fosso
Umbral pescoço arqueado; cera derrama.
Desmedida ira, eu amo e, ínfimo, sou flecha
Medida velha epigrama.

Amor feliz, não há.
A não ser ao imortal
Que me tornou.


terça-feira, 31 de julho de 2018

Paraty

Nas ruas pedregulhos
meu coração em cacos
paredes paradas linguagem
da reverberação nas vielas
bandidas silenciosas

suor e sonhos
ali
como um dali
derretem

entre
 livros artistas amores

quinta-feira, 12 de julho de 2018

coração
pobre coração
tu vales quase nada
no torpor, na alvorada
na criança abandonada,
nas tristezas, nos sonhos, além.

coração,
meu tolo coração,
tu és quase uma piada
nessa noite enluarada
latejando dentro de mim.

o que queres?
amar o mundo?
mas o mundo não se importa!
de que vale teu franzino amor?
curarás o infinito horror, torpe, real?
não!

por que queres amar o mundo?
o mundo não é so flor, beleza, calor,
é também dor, esplanadas, baladas...
e catastróficas realidades
portanto, meu coração
te aquiete!

Ou serás uma tiete incorrigível?

quarta-feira, 11 de julho de 2018

Queixumes

Onde estás, meu amor, meus vagares
Me distraem, me bagunçam teus passos,
É no mar que escondes teus rastros?
Ou nos montes guardada aos altares

Qual u'a deusa que rogo em crer
Na alta noite em que sonho com flores?
(Devaneios, magias, amores,
Peito alvo, brandura a arder).

Onde estás, meu amor, paradeiro
De utopias, teu corpo liberto
Ombreando meu talhe deserto,
Fantasia de um dia faceiro,

Um dia? - não, quero uma vida!
Pois a mim, um amor só me basta,
Se tragédia, Medéia ou Jocasta,
Tanto faz, pois vivo qual deicida

Aguardando um amor redentor.
Um amor bem real, com problemas,
Mas também com beijos, poemas...
E, sou fraco, um amor com transpor!

Onde estás, meu amor? bicho fero
É a mim que eu teimo a domar,
Entregando-me a cada olhar
Fugidio no entregar-me sincero

A mulher que ainda não tenho.
Que é fibra, riqueza e coragem,
É beleza, arrojo, imagem
De um ato heroico de antanho.

Onde estás, meu amor, heroína,
Desses tempos sombrios de viver,
Em que nascer mulher é sofrer,
Em que a força é toda feminina?

Onde estás, meu amor, minha menina,
Eu te rogo, venha proteger-me,
Eu sou frágil, vivo a esconder-me,
Suplicando, onde estás, minha carmina?!





miragem

as montanhas verdejantes
cobriram todo horizonte,
sorriso da claridade,
lumiando flor e fonte.

ao largo, um doce ser,
tristes olhos, meigo, só,
pensa o sol e a solidão
destinando-o ao pó.

as montanhas verdejantes
de bichos livres, possantes,
faz que sonhe a liberdade,

o amor, paixão, trindade...
e criando vai seu mundo
como um deus do caos profundo.










sábado, 7 de julho de 2018

derrota

a derrota abalou os copos
dos corpos plenos na multidão.
há goles secos, gritos obscenos,
     lágrimas
                     raiva
                                selfies
                                             rouquidão
                 derrota na bola

e quanto abala!
e tudo isso!

Há muito ódio, mato moliço,
ainda um homem de olhar roliço,
dizendo:

O inço será a eleição!




terça-feira, 3 de julho de 2018

Popular

viver uma vida sem ela
é morrer sem ter crendice,
ter no olhar uma remela
que deixa em plena doidice

minha cuca; mas doido sou são,
pensando na boca dela,
sonhando com a sedução,
com uma casa sem janela,

sem porta, uma fortaleza,
onde eu fosse um sultão
E ela fosse uma princesa,
Nós dois de dadas as mãos,

Nós dois em salivação,
Naquela casa quentinha,
Onde era sempre verão
Pois nem janela não tinha.

Ai da minha vida sem ela!
Hoje sem eira nem beira,
Eu vivo nessa mazela
De ter que escrever uma besteira

No tempo que tenho livre,
Quando não estou a rezar
Para então que ela me livre
Uma carta, um telefonar,

Dizend'os tempos vividos,
Tempos de plena loucura,
Não desse doido varrido,
Do nosso amor de doçura,

Que diga ter um castelo,
Faltando um cavaleiro,
De coração meigo e belo,
E amador por inteiro.

E o cavaleiro sou eu,
Um bobo alegre infante,
Querendo do mundo o céu,
Montado num rocinante,

Diga da minha loucura,
Que é coisa de alma bonita,
Alma tão rara, tão pura,
Mais rara que uma pepita

De ouro ou alazão ligeiro.
Raro como ter escuta,
Amigo, um companheiro,
Em mundo de luto e luta.

Ela, florzinha de espinho,
Queira também o meu cheiro,
O meu calor, meu carinho
Que sonha em domar seu veiro.

(Gosto, me firo e mais quero
Sentir a pele macia
Da dona do sonho fero,
Na cama, mato, bacia...)

Isso ela me dizia,
No meu sonho atormentado,
Mas nada, nada existia,
Apenas meu olho inchado.

Que falta, como é ruim!
Amar, não ser o amado,
Gostar e não ter pra mim
Seu beijo apaixonado...

Então, doidice, eu prossigo,
escrevendo esses versinhos,
Para que eu siga consigo
Mesmo seguindo sozinho.


domingo, 1 de julho de 2018

Odi et Amo

Odeio e amo. Vivo, no entanto,
Amargando cruel inclemência,
Maldizendo a estada e a ausência,
Sem tinir o abandono do pranto,
Pois odeio e amo; e em tudo emulo
A elegância sutil de Catulo,
Motejando o epigrama, porquanto

Odeio e amo! E não perguntais
O motivo de tal malquerença?
A culpada, irada e infensa,
A quem tanto versei os meus ais.
Mas não sei se há mesmo razões
De sofrer, pois nem há corações
Partilhados; há tristeza e cais

E despedida, e amor e ódio,
Ojerizo armando em batéis,
Os poemas que armei em papéis,
Pensando no amor, em um pódio,
E também ao mundo melhorar,
Porque é triste nos prados o amar,
Se o solo está coberto de sódio.

Temo e sinto. E não quero odiar
O amor que eu lha consagrei,
Mas pensando no quanto penei
Desconheço como transformar
A penúria, o amargo, a malícia,
A barbárie da nova carícia,
Num singelo e leve cantar.

Odeio e amo; eis o meu fado,
E eu tentei ser-lha bom, fui maldito!
E tentei ser-lha justo, eis delito!
Pois a filha da fruta é pecado
- Quantas ânsias, não fui pecador -
Do recado, ainda sinto o olor,
Te odiando, e amando, alternado.

sábado, 30 de junho de 2018

quarta-feira, 27 de junho de 2018

Cântico

Cântico dos cânticos,
Vindo da solidão.

Ela não me beijará,
Pois não há beijos nas bocas
E vinho em abundância
Sevicia o amor.

Nenhum óleo,
Nem mesmo olhos são bons,
Nem percorrem meu colo
Num amar entre jovens.

Imperativo: arrasta-me!
Supliquei que corresse
E, rei, conduzisse-me ao seu quarto
Para gozarmos e regozijarmos
O vinho seviciante
Do amor dos amantes.

Se és negro de beleza rara,
Filho da cidade cinza,
Sou como as ruínas augustas
De um bar inconsolável.

Renegaram-me e renegam-me
Pois sou acinzentado.
Foram as fuligens que deram piche,
Guardando automobilísticas impossibilidades:
Nem na vida avancei.

Conte-me se há uma amada
Para mi'alma malamada,
Reservada em escanteio,
Escondida na sombra do meio-dia!
Quero ser o homem ao léu,
Aguardando que se me tirem o véu
E me podem como um carneiro.

Se não houver,
Direi a mim mesmo:
Sois o mais belo dos sozinhos,
Vai-te embora escrever poemas ao relento,
No pomar, na chuva e ao vento,
Junta-te ao remanso dos ascetas.

Mas quero amar e comparar
U'a mulher com o palácio da alvorada.

Pô-la-ia com os pingentes mais ricos,
E nos colos, colgemas e poemas.

Brincos de penas, num novo ambulante
Compraria e dar-lhe-ia com sorriso prateado.

Uma moça mimada,
Minha amada seria.
Durma em meu ombro, ventre.

Um cacho de frutas,
Paixão é para mim
Natureza morta entre os cacos das ruas.

Minha amiga não é bela,
Revoa como pomba quando me achego.

Nem belo, nem amado,
Sei ser meigo
Sonhando com um leito de ramos frescos.

Quero encher de cidra nossos corpos,
Deita-te em minha cama como cipreste.

segunda-feira, 25 de junho de 2018

antifilosófica

não sei de nada saber
quando os lábios me beijam.

que sei de calar as paixões
quando os pelos sibilam?

como amar o amor,
como cegar as constelações
de cheiros
que os cabelos inspiram?

o seu sexo,
o seu sumo
valem mais do que máximas imperiais.

o sabor do amor é a ambrosia dos fluídos.




quinta-feira, 21 de junho de 2018

Amor

Naufragar em ilha hostil,
Ou boiar no mar tormento,
O amor é duro alento,
Do morrer, ele é o estio!

É beijar-te a carne nua,
As dobras lisas das coxas,
E deixar-te as ancas roxas
Percorrendo a língua tua

Com a gramática da pele.
Pois te amo com o ardor
Do amante que atrele

O morrer em ti por dentro,
Em tua carne que desventro,
C'o cálido e puro amor.

Cantada

Você, moça branca como a neve,
Só em tua boca me posso sentir leve.

Você, moça branca como a neve,
Louca, me controla e meu sangue ferve.

Você, moça branca como a neve,
Assoma e assombra a tua beleza,
Rima, soma e delicadeza.

Em você, moça branca como a neve,
O sorriso de menina transformando-se em mulher,
E o meu riso assombrado,
Admirando seu pecado,
Nada, nada, nada...
E mais quer!

Nota de um adolescente de dezessete anos


"Enquanto os meninos perseguem ambiciosamente o sexo alheio e sonham com a fama e o sucesso, me contentaria em transformar a mim e ao mundo. Seus ídolos são jogadores de futebol e cantores. Eu desejo ser apenas um misto de Antonio Cicero com Gonzaguinha. Um homem, afinal."

terça-feira, 12 de junho de 2018

Redondilha do dia dos namorados

MOTE
Namorada não a tenho
Nem a busco, sofro dela,
Aguardo pela chancela
Do novo amor um empenho.


VOLTA
Não tenho a moça adorada,
Não há adoçar da visão.
Da moça, doce aflição,
Apenas da dor, debandada.
Não há mulher bem amada,
Não há olhos a me olhar;
Desejo o lábio beijar
E amar em bela alvorada.

domingo, 10 de junho de 2018

Amor de apostas

Sinto a falta de dedos dedilhantes
Sobre a carcaça da minha epiderme,
Sinto a falta de lábios bem errantes
Sobre meus lábios, sobre o corpo inerme,

Inebriado e entregue ao feitiço
De uma mulher, um ser amado e amante,
Que eu ame tanto e que também me encante,
E me liberte do estado enfermiço

Da vida; sou como um tolo lançado
A um sorriso, ao bem do que me chega,
Que não pareça o bem da que me nega

O amor doce e louco e apaixonado.
Que me dedilhe ventre e mãos e costas,
Me escandindo em um amor de apostas.

terça-feira, 5 de junho de 2018

Beijo de tisana

Andaste em prados sumida,
Fermosa dama serrana,
Envolta numa má trama
Desta matrona que é a vida.
Surgiste-me em dia triste,
Meu bem, tu me acudiste.

Andaste em serra fremida,
Mulher morena, marrana,
Chamaste-me pr'uma gincana,
Pr'um brinde na noite renhida.
Mas, moça, essa noite existe?
Pegaste-me a mão num chiste...

Andaste, tu percorreste
Os céus, beleza cigana,
Dama, teu beijo é tisana,
Olhar é flor de moleste.
E quando tu te despiste,
Os céus inteiros luziste!

Andaste em campos sulinos,
Helena, linda aleivosa,
Querendo alcançar, airosa,
A ponte do amor divino.
Amor, porém, tu sabias
Não é eros, mas philia.

Andaste, graciosa e esbelta,
Com tua revolta, e aplana
Tornar com a beleza gitana
O mundo, palco e ribalta.
Morena, peço que sorria,
Teu riso é mia poesia.

sábado, 2 de junho de 2018

Se de amor morresse um dia

A  A. L.

Se de amor morresse um dia
Naufragado em lábios teus,
De amor viver soía
Em teus lábios um adeus.

E que em teu moreno corpo,
Teu olhar, tua voz, tua tez
Montanhosa onde escarpo
Perfilhando a insensatez,

Encontrasse a esperança,
Fero amor,  morena Inês,
Confundindo a tua dança
Em meu corpo e lividez.

E se um dia me alcança
Novamente esse ardor
De encontrar em tua trança
Um alívio, um torpor,

É por tua residência,
Por teus bichos, por teus nichos,
Nessa tua resistência,
Em tua língua, teus caprichos.

Se de tudo isso morresse,
Morena dos olhos lindos,
- Morena que tu me cresse:
Esqueça os amores findos-

E recorde o que fizeste,
O quanto me encantaste,
O beijo tu que me deste,
Pro beijo fui em arraste,

Pois moça maravilhosa,
Se de amor morresse um dia,
Lembraria de ti cheirosa,
Morreria em alegria.

terça-feira, 29 de maio de 2018

frases curtas

frases curtas
cortadas
estilhaçadas
passadas a navalha
como para dar gravidade a muita
banalidade
não fazem poema.
no máximo, morfema,
usualmente, blasfema.

Poema menor


olhar que olha,
olhar que cria.
a língua molha,
o corpo esfria.

olhar que olha,
olhar que cria.
a flor desfolha,
o ufano desfila.

olhar que olha,
olhar que cria.
o tempo arrolha,
tampo esvazia.

olhar que olha
e nada vê.
custa a crer
na crosta crua.

olhar que olha a lua.
olhos na pele nua.
moço torto na rua.

(só me acuda se meu olhar criar
versos de auto-ajuda)

olhar que olha,
olhar, criatura:
a poesia
e a loucura.

domingo, 27 de maio de 2018

Poème bohème

Il y a des poèmes.
Il y a des bohèmes.
Usuellement ils sont ensembles:
Comme sont la croix et la peine.

Cólica Premonitória

cólica premonitória,
prevejo o abandono
devagar em uníssono,
cadmo e admoestatória.
trágico laço único
é vida é rua é passo
é disfarce ou traço
que pune e púnico.
lânguida moça lúbrica
de ancas bem deslizantes,
tua face, tuas covas amantes,
nunciaram singela rúbrica.
inscrita noutro registro,
outro nome não nosso,
registro feito no osso
futuro é fatum sinistro.
cólica now rogatória!
curvo meu eu sobre o teu
suplico, do mundo escória
serei sem carinho

sou breu.

sexta-feira, 25 de maio de 2018

Instapoet

I want to be an Instapoet.
I want to make few beautiful verses.
I want to distract you from our miserable life
With passions and loves that I never had.

But I can't!

I need a real woman to love,
I need to cry our disease,
I need to show you my disgrace.
And maybe after all,
I will have a poem.

And I will be a poet
As the poets from the old times.

quinta-feira, 24 de maio de 2018

Soneto do amor presente

Nunca dantes nos amores passados
Houvera dor como a do amor presente
Eis postura de um vil penitente,
Medo deveras de um autopecado...

Nunca! Eis medo, o abandonado,
Filho da porfia, vilã da ardura,
Faz-se presente na vida madura,
Que se entrega sendo um violentado.

Amores, sabores, quais bens nos trazem,
Se sempre nos ferem e queremos mais?
Será medo da solidão mordaz,

Será o triste langor da vida nua?
Sei que há apenas a lembrança tua,
Que restará onde os sonhos jazem.

quarta-feira, 16 de maio de 2018

Diálogo Ideal

Espero que tu me entendas:
Eu entendo a tua dor.
Que ainda há uma contenda
E há tristeza, meu amor.

Há coisas que permanecem,
E outras que não dão paz,
Há erros que adormecem
E há outro que é vivaz.

Não há tempo, só há dores,
Nem soluços são bastantes,
Mas, lembra, há meus amores,
Meus abraços confortantes;

Errei, eu sei, tolamente,
Amor, fui desesperada
Calar teu amor, debandada,
Errei com o corpo; e... "mentes"?

Não, falo a ti verazmente,
Do meu profundo mais ocre,
Feri-te, fiz teu massacre,
Mas amo-te tão lealmente,

Que quem feri foi a mim,
Odeio aquilo que fiz,
O homem com quem perfiz
A dor que deixa em coxim,

O homem, aquele que amo,
Por quem me disponho a lutar,
Respeito o tempo e clamo,
Carinhos dar-te-ei pra curar.

Amor, pois agora esparramo,
Pois amo e sei te amar.




sexta-feira, 11 de maio de 2018

Soneto da messe

Ela um dia disse-me adeus.
Ai, Deus, então, pus-me a rogar,
- Se ela um dia me abandonar
Pedi, senhor, levai-me aos céus.

Ela me disse não é amor.
- Amor, que dizes? quanto desvão,
Se eu curo em ti a solidão
E cura em mim meu dissabor,

Nunca se sabe enfim ao certo
Ou com acerto o que nos há;
Só uma certeza o amor dá

Quando te pego e te aperto,
Quando me beija e me entorpece:
Não há mais pressa, nem há prece.

quarta-feira, 2 de maio de 2018

Ave Dea

Corpo alvo, clara e bela,
Composta  - que deus me ajude!-
Do nívio fim que mazela,
Da tristeza plena e rude.

Lumia tua brancura
Amentando o desdém;
Que pra vida não há cura,
Só há lira e vintém.

Vizinhos somos do além.
Ela, que em tudo avém,
Bela, qual luz em Belém;

Eu, em minha decrepitude,
Pois jovem nada me almude,
Alma de Matusalém.

quinta-feira, 29 de março de 2018

Quadras a um presidenciável

A Jair Bolsonaro
o candidato é uma farsa,
farsa que é fausta e boçal,
e aqueles a quem engraça,
de inteligência arnal,

exibem com'uma garça
o seu discurso fecal,
sempre tendo um comparsa,
que diz: tu és genial!

gênio é o candidato
que une toda a tolice
fazendo dela um retrato
a imagem de toda pulhice

de todo o desiderato,
de toda a maluquice,
do homem que é carrapato,
do homem em plena sandice.

o candidato é malino,
não sendo inteligente
sendo bronco como um dino,
-cadê meteoro? enchente?-

que tire o horror, baixeza,
de termos tal candidato,
um ser de tanta vileza,
e o ser se diz oblato

mas ama armas e guerra,
e o burro a ele chancela:
"na guerra por ele eu mato,
mito é ele, o outro, rato;

o outro é no pugilato"
pois vil como o candidato.
Então rogo ao sindicato
montemos o aparato

pois para os obtusos,
sou praga nestas encostas,
saber é ser um intruso,
e parvo é ser patriota.






segunda-feira, 26 de março de 2018

Veredas

encontrar alguém
e lançar-se
como bola de gude
ou fuligem
das que saem dos caminhões
nas metrópoles.

tudo é um pouco fuligem.

fugidias são as coisas de poetas:
sabem que caminhões
vagam sem setas
e a vida é sem destino.

lançar-se
como rilke.
amar como homens
não bichos
que somos
nas cidades.

amar outro ser desesperado.

Esperar como uma pluma
em céu
cinzento
o dia claro e a redenção.

pão com manteiga
é revolução
pra quem anda sempre faminto.

lançar-se como esfera
como satélite em órbita
de coisas nanicas.

lançar-se como o homem na língua
da mulher ou do povo.

desesperar
de arrancar os cabelos
ou cabeças.

sexta-feira, 23 de março de 2018

De Édipo

Alma, perdida alma,
Tramas sem ser sentida
Meu tormento de vida,
Meu fado que me espalma.

Tragicamente impávido,
Vago, e penso ser livre,
Quando em diatribe
Perco-me sendo ávido.

De púdicas carícias,
Cuidados, colo, seio.
Cálido é tanto o anseio,
Causas, Alma, malícia.

Vem-me depois a morte
De olhos a arrancar-me,
Nem ânimo ou alarme,
Salva a triste sorte!

Pois homem é deste carme,
Sem alma que o reconforte.

domingo, 11 de março de 2018

Amarar

Se não me amar
Não há mal.

Não me amarro,
Mas me amanho:

Se não me ama,
Eu me amaro...

Se te amares,
perdoa,
não te amo.

Desespero

Dou-me versos de desesperança,
Compostos com espinhos na carne,
Como se eu me entoasse um alarme:
Pois é tempo de deixar lembrança!

Finda a obra, é o fim do apuro.
Sempre há uma saída egóica:
A's incapazes de ética estóica,
A's incapazes de ser Epicuro!

Dou-me versos buscando a saída
Pra minha vida que não é maleita,
Que padece, que é obra suspeita,

Que ainda não foi conhecida.
Desespero não sendo um deus,
Mas um homem que teme o adeus.

segunda-feira, 5 de março de 2018

A Aurora

(tradução do poema de George Sand, pseudônimo de Amandine Aurore Lucile Dupin)

A natureza é tudo o que vemos,
O que queremos, o que amamos,
O que sabemos, tudo o que cremos,
Tudo o que sentimos em nós mesmos.

Ela é bonita p’ra quem a vê,
Ela é boa àquele que a ama,
Justa, é quando nela se crê
E se a respeitámos em si mesma.

Observe o céu, ele te vê,
Abrace a terra, ela te ama.
A verdade ela é o que se crê
Na natureza ela é ti mesma.

Não serei poeta de multidões

Não serei poeta de multidões,
Nem farei multidões de versos.
Nem marginal com meus botões,
Menos ainda serei o anverso.

Fortuna crítica, não a terei,
Nem a desejo, sou disto avesso,
Cansei-me cedo de toda lei,
Se logo a vejo, me enfureço.

Contar a ti meus sentimentos
Com um sofrimento tão anormal,
Forçando tanto um ornamento
Pr'uma emoção tola e trivial?

Não! quero estar nas ruas, nos muros, favelas,
dos banheiros na porta, guardanapos e telas.
(Misturo Ovídio com Jean d'Ormesson,
Riso prazeroso em uma bela oração....
Creio em profetas, mas eu os matei,
Bem sei, no primórdio, primeira era a Lei)
E quando me lerem os calças de flanela
Murmurem impropérios, que isto me chancela!



domingo, 11 de fevereiro de 2018

Avenida

na avenida, fuligens e foliões,
moças livres, moços rudes, bailarinos,
uns grotões desabrocham em meninos,
na avenida enternecida, confusões.

na avenida, tudo era colorido,
colusão, tribos, cores e canções,
mendicantes travestidos são barões,
nos cordões, onde o povo é bem-vindo.

carnaval, festim, banquete, folguedos,
em alegria, o povo ri em comunhão;
o embaraço de onde irmana a solidão,

abandona as casas, almas, e os sobrados.
rompe o bicudo e morno tempo de enfado
a procissão moldando um caos iluminado!

quinta-feira, 8 de fevereiro de 2018

Relato

Escreve o poema suspeito!
Há muito mais do que contar:
Há sonhos que foram desfeitos,
Há homens chegando do mar.

Escreve e descreve a urdidura,
Que os deuses não vão perdurar
Sem paz na violenta doçura,
De ouro o sangue foi brilhar.

Escreve, que a escrita é lembrança
Dos tempos da chuva e das guerras,
Já foi-se o tempo da bonança,
O tempo de plumas, panteras.

Escreve depressa, ligeiro,
Que o tempo parou no instante
E chega o homem traiçoeiro
Romper o sol indo ao poente.

Escreve: tomamos escravos!
Não para os submeter,
Não para fazermos conchavo,
Para aos deuses nos apender.

Escreve: punhal, coração,
Do homem já sacrificado,
O bumbo, tambor da oração
Que ainda não era pecado.

Escreve o sonho perfeito,
O nosso sonho assassinado,
O sonho que um novo sujeito
Julgou vil e ultrapassado.

Escreve e registra a derrota
Que um dia hão de perceber,
Se ainda havia outra rota,
Agora haverá perecer...



segunda-feira, 5 de fevereiro de 2018

Ainda no caminho, ainda Maiakovski


Uma canção para o meu tempo – o nosso- há muito se escreveu. Encontrei-a nas surpresas preparadas pela seqüência de causalidades da vida, escolhas conscientes que me proveram de armas.Armas para um combate árduo. Em tempo: para nós, que não pactuamos com os senhores do mundo, o combate é imperioso!

Vagando, tal como os vagabundos vagam em busca de um prazer fugaz num copo, num corpo, encontrei-me sem querer com Maiakovski impresso em páginas de livro, museu adornado no qual – por covardia - matamos imediatamente nossa intensa sede de justiça. Para minha surpresa, ele estava acompanhado.

Quem nunca ouviu a velha história? Do roubo da flor do jardim? Da morte do cão? Do roubo da luz? Da descoberta do medo? Da voz arrancada da garganta? Do silêncio. Do silêncio. Do silêncio... ?

“(...)Tu sabes,
conheces melhor do que eu
a velha história.
Na primeira noite eles se aproximam
e roubam uma flor
do nosso jardim.
E não dizemos nada.
Na segunda noite, já não se escondem:
pisam as flores,
matam nosso cão,
e não dizemos nada.
Até que um dia,
o mais frágil deles
entra sozinho em nossa casa,
rouba-nos a luz, e,
conhecendo nosso medo,
arranca-nos a voz da garganta.
E já não podemos dizer nada(...)”

Foi caminhando com Maiakovski que Eduardo Alves da Costa entrou para a história da poesia contemporânea do Brasil. No entanto, por muito tempo, devido a um equívoco na Epígrafe de um livro, em que era utilizado o trecho que acima está colacionado, atribuindo o excerto a Maiakovski, Eduardo Alves da Costa permaneceu como um dos poetas mais reproduzidos no Brasil, ainda que anonimamente. Coisa que dizem diverti-lo.

Poeta alheio a fama, formado em Direito no Mackenzie em 1962 – ressaltando que “já não estava lá quando o Mackenzie ‘ empastelou’ a Faculdade de filosofia, num retorno ao tempo dos hunos” -, compara a poesia com a alquimia: tal como esta, “a poesia é o aumento das vibrações”.

Se não acredita nesta comparação, faça um experimento: leia algum poema seu sem esboçar reação. Desafio quase impossível! Ou nos surge um aperto no peito, ou um riso debochado, ou um grito que há muito queria sair, mas não tínhamos coragem.
Misturando um impactante cunho social – não aquele rasteiro de uma estética repetitiva, mas criativa, inventiva -, com uma linguagem que se associa ao conteúdo de maneira intrínseca. Afinal, “ seja qual o ‘conteúdo’ que o Poeta-Alquimista pretenda fazer chegar ao leitor ouvinte, deve necessariamente decorrer do trabalho exercido sobre a linguagem, ou seja, das associações, entrechoques, absorções, anulações, intensificações, enfim, todas as reações manifestadas pelas palavras em confronto durante o processo poético-alquímico”

E que maravilha não é ver o resultado a que chega nosso alquimista. Transita com facilidade do poema mais incisivo contra a ordem social burguesa, até um poeminha escatológico – que tira sarro do bom comportamente exigido do citoyen.
O golpe de misericórdia me parece ser dado num poema destinado ao seu tempo – mas que bem pode ser o nosso. O mundo não melhorou, ou melhor, as manifestações mais agudas da crise civilizatória do Capital se mostram cada vez mais explícitas. A social-democracia fracassou; a desregulamentação dos mercados, que se seguiu à grande crise do modelo econômico do pós-guerra, em 1973, produziu uma baixa da inflação ao custo de um aumento do desemprego e da miséria gigantescos; o mundo árabe se contorce ao cuspir e substituir déspotas mantidos pelo imperialismo. Agonizante, o mundo pede socorro e as condições objetivas o exigem. O que pode ser pedido ao poeta em tal situação?!

“Não peças ao poeta
uma canção discreta
num tempo de conquistas
e loucura.
Para a liberdade
ou para a morte
é que o mundo caminha:
e isto requer estrutura

Quanto te aproximas
segurando o copo, em pose estudada,
tenho vontade de te dar um murro
para que acordes no século vindouro
com a tua problemática suspirante.

Ah, meu pequeno, a tua vida!
Tua amada te traiu com teu melhor amigo,
não suportas o professor de estética
e teu pai não te deu o carro prometido.
Já não vais à Europa?
Tua vida é lixo
e teus dias se acrescentam à História
como o pipi que as crianças fazem na praia.
Queres um minuto de atenção para o teu soluço
e me agarras o braço
e insistes
e te aborreces quando não escuto

Espera... na tua agitação
deixaste cair uma gota de licor
na tua calça de flanela.

Aceitas um conselho?
Abandona de vez as festinhas de sábado
e lança teus nervos distendidos
até a outra margem
para que os outros,
os que vêm depois de ti,
encontrem passagem.”
(Eduardo Alves da Costa, Canção para o meu Tempo)

Sigo no caminho, com Maiakovski e Eduardo Alves da Costa

Assombro

encontro na rua o poeta
amargo soturno ateu.
- para onde fostes, alegria?
murmura com tal agonia
que a rua espelha em covardia:
ai, deus,o poeta sou eu!

Solitários

névoa!
névoa e aridez,
rosto sulcado
na terra sofrida,
solidão anatômica,
crônica
rostos e imensidão.

aridez!
névoa e solidão,
corações montanhosos
no lamaçal recoberto,
trilhos aquosos,
maíz!

solidez!
solidão e festa
assombrada,
fendidos são os homens
e ofendido o país.

ébria!
realidade desleal.
grileiros e grilos,
latifúndio e patrões.
bichos temerosos
bebem e matam e amam
como homens.

os deuses já abandonaram,
destronaram o panteão
dos pássaros e pumas,
no píncaro de plumas
matou-se a comunhão.

murais comuns,
redenção campesina.
o buraco no rosto
é o vazio de ser.
homens antigos
como homens modernos.

solitária imposição
dos homens novos:
um Deus que não responde,
que se esconde e não ama
o homem.
um Deus erótico.

derrelitos lançados
morrem e vivem
atormentados
num carnaval.
ansiando
um novo deus:
sangue, tripas, corpo,
deus carnal





quinta-feira, 11 de janeiro de 2018

Gênese

Deus na tradição da bíblia hebraica não criou Eva da costela de Adão; ou melhor, não somente. Se lemos o versículo 27 do Gênesis 1, vemos que "Deus os criou, homem e mulher os criou". O primeiro "homem" era um Adão-homem e Adão-mulher.

Apenas no Gênesis 2 Deus cria novamente uma mulher da costela de um "Adam" puramente homem. São narrativas conflitivas, parece-me.

Prefiro a primeira, que não torna Eva uma dependente da carne adâmica; ademais, preserva a dotação divina da verve e apetite intelectual da mulher: Eva preserva de Deus a dotação do intelecto em sua imensa curiosidade.

Muitas mulheres bíblicas possuem uma imensa sensualidade e transgressão, combinadas com uma imensa sede pelo pensar. Poderíamos dizer que isto é preservado de Lilith, um demônio feminino talmúdico; prefiro pensar que provém da primeira Eva, da parte mulher do humano, criado diretamente por Deus - e realçando o que há de mais íntimo em nossa condição: se há uma ação tipicamente feminina, este verbo-ação é firmeza, é o lutar.

segunda-feira, 8 de janeiro de 2018

Saudade

Singra os mares revoltosos do meu peito
Como u'a nau a saudade silibrina,
Verde água, ver-te a mágoa, amorfina
E naufraga a alma, e o espírito desfeito.

A imagem é o presente escorreito,
Mas arranco os olhos para não mais te ver,
Pois tua falta é parte minha a fender
E de ti recordo e sofro teu trejeito.

Em minha casa, em tua rua, e na vida,
Protetora, fostes também minha morada,
Fostes mais que minha deusa adorada,

Sangro tanto, fostes nossa Aparecida.
Em meu peito revoltoso contra o céu,
Rogo ver-te, rogo mesmo sendo incréu.


quinta-feira, 4 de janeiro de 2018

Tempo perdido

Durante muito tempo, deitava-me cedo
Tão cedo quanto não me levanto,
Pois envolvido me via no encanto,
De amor, prazer, que adormecer era degredo,

Deitava-me cedo, pensando em coisas mil,
No amor de Delfina por Adolfo,
Dessabor, que aumenta, é balofo,
Lembrando o passado, persistente, coisa vil.

Vivia em mil recantos, pois literato
Somente é homem; deixo pra alguém
desse meu conto viver do que canto,

Se sobrevivo lendo, se não vivi ,
Vivo sabendo que apenas sei bem
O desvairar de poeta que atrevi .