quinta-feira, 29 de dezembro de 2016

Fóssil (ou de quando for um sábio)

A Nelson Ascher

Quando me for um sábio,

Lábia de um destempero
Não terá desespero
Nem tem lugar pr'um lábio.

Quando fosse-me um sábio,

Hábil lugar na terra
Lábil, onde, sincera,
Preso por autolábio.

Quando fóssil: um sábio,

Não serei mais humano
Preso ao cotidiano
Louco com cosmolábio.

Fóssil eu como um sábio,

Como serei um sábio
Se onde sem tempolábil
Não terá alfarrábio?

segunda-feira, 26 de dezembro de 2016

Kitsch

Hoje eu quis escrever um poema
Em que coubesse todo e qualquer tema:
Que abrisse toda a máquina do mundo
E que ainda pudesse ir mais a fundo.
Que reunisse dos poemas a sujeira,
Somando algo a poesia brasileira.
E com vininho bebesse toda alegria,
E escarrasse da boca a melancolia
De Dos Anjos, o nosso pré-moderno,
Que antecipou em tantas coisas meu caderno.
Ele mostrasse, de um jeito acalentador,
Poesia na dor, na flor, no elevador,
Mas lembrasse que são só primeiros cantos,
Como Gonçalves, que fez muitos outros tantos.
E clareando de um modo enigmático,
Escrevesse uma poética de pneumático!
Que gritasse todos os amores a Marília
Sem esquecer todos poemas de Cecília,
Essa mocinha que não foi de Botafogo,
E motivou, salvando-me o desassossego.
Mas eis o achado, surpresa ao desavisado.
Um poema visando compilação, ou rimas 
Simples com alguma erudição, são:
Poemas pobres e esculpidos em pastiche:
Só imitar os neopoetas rima kitsch.


Açaí

Em quem viu o gracejo
Daquela saia de moça
Da boca aquosa, poça
Fremiu e pulsou o desejo.

Deliciosamente delicada,
Âmbar: a cor dos seus lábios
Assustava meu olhar sábio,
Que fremia, fervia mas olhava.

Arroxeando lentamente
Em movimentos sutis
O gelo deixando-me ardente,

O ardil de uma doce atriz
Com mil segredos pendentes,
Ela... Fostes! Não tive seu bis.

quarta-feira, 14 de dezembro de 2016

Tormento

O manto que cobria
A volúpia de nossas noites
Foi esquecido num banco de praça
Sem nome, sem fome, sem graça.

O riso que frequentava
Nossas bocas, meio gozo,
Meio gaza,
Rasgou-se em tua alegria
Fria.

Até então o amor se punha prenhe
Em nossos ventres sedentos
Nos sussuros, nos nossos sopros, nos nossos ventos
Voou como passarinho, abandonando minha passárgada
(Não tive mais na cama a mulher que desejava)

O calor inflamava
A tua bochecha rosada
De prazer, vergonha e pavor
- Eu a provei.

Quando convidei-a novamente
Dentes rangendo, arrefecendo, pleurando,
A bebida amarga da coragem e o peito dilacerado.
Não. Longínquo.

Eis aqui um tormento.
Destes que se deixa em balcões de padaria.
Mas não penses que perderei a vida
Lamentando o que a nós faltou.

Amar vale a pena.
Viver vale a pena.
Sofrer vale a pena.

Azar no amor. Sorte no poema.

sexta-feira, 16 de setembro de 2016

Poesia dos sem poesia (fitando os smart)

Três versos, octassílabos
Talhado em pele o metal.
Se é um tanto mais ousado
Pode até tentar uma heróica
Um verso de quinze, talvez.
Dadá, protéica, um gole
De um verso da arte desfeita.
(Nega o verso prometeico,
Tornando à hybris o homem
Já sem fome de nada eterno.)

Você, do mundo um descarte,
Que fita tudo com alegria,
Repete em inglês: sou smart!
Na rede que insta azia.

Homem...
No mundo fomenta os ais
Com os I-pod, i-cloud, i-pad,
Todas as merdas que fomentais!

Faz um favor a si mesmo?
Com teu músculo bem torneado,
De pozinhos e coisas afins,
Cava uma cova profunda,
Enterre tua fronte ossuda
E o mundo vai ser mais feliz!

Noíte Ocídua

Eis mais uma noite ocídua,
Mas quem sua boca tocou
Não foi a boca assídua
Do homem que lhe amou.

Eis noite que vinha à míngua:
O ocre sabor da espera
Guardou-se em mim; e a fera
tocava-se em outra língua.

Soneto de amor estranho
Que fere num apeganho:
Amor que planeja a dor.

Em noite já tão ocídua
Feriu com espinho a flor
A nossa paixão decídua.

Viver

Viver é uma nonada.
No abismo do Ser
Há paixão mal tragada.

Viver é ninharia
Pois razão há de ter
Numa fúria sombria?

Viver, descalabro,
Sem razão há de ter
Ao macabro e glabro.

Viver é um falecer,
Uma constante morte:
O melhor é foder.

terça-feira, 2 de agosto de 2016

Μοῖρα

Louvou-me a vida já gasta,
O drama eivado em papel.
A farsa travestida em fel?
Tal Medéia ou tal Jocasta.

Saudou-me a vida que emplastra,

Agarrando a carcaça ao leito.
Lembrança é o pior defeito,
Feitiço da Moira canastra.

Lumia, vadia, sem luto,

Fatal,o vital escorbuto
Travessa do rio Esquecer.

Lembrou-me a glória a perder

O deus que brincava com os teus
Ao homem querendo ser Deus.

quarta-feira, 27 de julho de 2016

Cópula

Consumidos os corpos
Uma cópula ausente,
A pausa-verbo, o sopro
           Da frase
          ao ventre.

terça-feira, 19 de julho de 2016

Ding Dong

aimer, pas se fier
c'est le ding dong du coeur
la cloche des enamourés

Hypokeimenos chronos

la grande et dernière question,
répondez pour la souffrir!
sera le présent amorcé
le futur du passé
ou le passé de l'avenir?

segunda-feira, 18 de julho de 2016

Haiku

Borboleta numa flor.
Eis a essência do Haikai:
Enigma do esplendor.

Turvo

Odeio poetas turvos!
Que pensam para rimar
Rimas internas dóceis
Apenas palavras torpes,
Umas rimas engraçadinhas,
Como se a vida transigisse
Entre a absoluta culpa do caos
E o abismo do sem-sentido.

Rime a vida - que esvai,
Na dor, nadador dos nadas,
Com a fétida trama da teodiceia.


Esfinge



Ah, menina que me atinge
Sabe mal quanto lhe adoro!
Nosso amor é mera esfinge:
Não decifra, eu te devoro.