segunda-feira, 31 de março de 2014

A língua

Hoje uma menina mostrou
                           a língua e a
                 audácia para mim.

Que menina! Que danada!

Sua língua, olhei
com olhos machadianos
         coração, atento, ao vento:

Saliva
           Lágrima
                            Drama
Alívio
           Lamento
                            Lama

Na língua da menina,
reencontrei
minha inocência perdida
minhas ilusões, meu anéis

Mais do que tudo isso:
a certeza que esse mundo é todo um inço,
uma ferrugem, um homicida.

Na língua da menina,
meus sonhos e
esperanças
de criança
                  - destemida

domingo, 30 de março de 2014

Cantada n.2


Você é bonita!
Ah, é bonita...
Vestida de saia,
tomara-que-caia,
de calça, é bonita!
Você é bonita!
Vestida
de vestido
Despida...
deve ser tão bonita!
Você é bonita!
Vestida
de choro,
de gozo
ou de dor,
ah, é tão bonita!

Mas seria muito mais
bonita:
vestida
em mim.

terça-feira, 25 de março de 2014

Entre livros e lèvres

Entre livros
e lèvres,
entre agravos
e grèves,
alterno entre
dor e esperança.

Todos os dias
emboto meus desejos
com o nó da gravata
da garganta
ao abotoar o paletó.
O sapato engrachado
encaixota meus pés
e sonhos.

Como poderia eu, homem,
fruto de um amor finito
devasso,
fruto do tempo histórico
espírito
fugir da conformidade
pequeno-burguesa
e alçar um vôo universal?

Minha angústia
em nada se compara
à dor da mãe
arrastada
arrancada da vida
pela força policial.
Ao choro de fome
dos meninos sem nome.
À culpa sem culpa
dos sem escolha
dos sem escola
dos sem.

E eu lamentando-me por ser só?!
E eu lamentando-me por não ser Deus?
E eu lamentando-me por não ter um amor?!

Dêem-me licença, burocratas:
agora não é hora de passar com a minha dor!
Já não nos agrada os agravos!
Já faz tempo e a dor é muita!
A chama da esperança que
parecia apagada se renova!
São novos brados, são novas brasas, são novos bravos!
O galo gaulês há de cantar novamente agora
sob a roupagem de uma matreira arara-azul.

Não sou Deus.
Sou somente um.
Sou só.

Entre livros
e lèvres,
busco o meu caminho
sabendo que não,
não há um "meu caminho"
sem o caminho da multidão.

quarta-feira, 12 de março de 2014

O teu dorso é cinzeiro

O teu dorso é cinzeiro
Meus sonhos são brasas
Meus restos sem casa
Sonhos, gozos, asquerosos.

Despetalando o teu corpo,
Minhas mãos de tesoura
Arrancam tua pele e
Podam teus desesperos.

Lambeijando teus seios
Arrancando suspiros e arreios
Testa, orelha, pescoço, osso, quadril
Começo em tua boca
Termine, beibe -" onde já se viu?"

No teu bruço, moça,
O meu brusco e obtuso amor
Nossas dores, nossas cores
E mil e uma noite de amores!

Amor de boite, de butique,
Alambique pródigo cúbico
Dístico arrítmico levítico
Nossos quadris atômicos.

Diz-me frequentemente
" você não existe!"
Jogando-me na dúvida metafísica.

Oh artista do amor!
Oh pele adocicada!
Por que faz isso comigo?
Ainda que rejeitado, antes era!

Desejando meu sexo seco
E meu carinho aguado
Faz-me esquecer meu amor passado
E embriaga meus lábios com teu mel ardente

Ah, se o teu dorso fosse um só
Talvez fosse feliz
Mas assim como eu, não existe.

O teu dorso é cinzeiro,
Pura invenção!
Você são várias e ninguém
Em quem eu curo o meu porre
e minha solidão.