segunda-feira, 6 de julho de 2020

Questões ao meu país

Para onde foram os sonhos de minha geração?
Para onde se encaminharão aqueles que sob o esforço do pensamento dedicaram-se aos saberes inúteis, os não contábeis, improdutivos, os saberes?
Para onde serão lançados os jovens esguios, ou nem tanto, que envergavam as costas na rotina petrificada das bibliotecas, nas salas bafejadas, nas estantes, os que liam avidamente Ovídio enquanto sonhavam com um mundo de amores?
Aonde terão lugar os que se sentem mais à vontade na pátria fictícia da literatura, junto ao encarquilhar da pele de Castorp ou ao deitar cedo de Proust, aqueles que seriam estralhaçados na Auschwitz de Jean Améry, por serem dispensáveis, os arautos da cultura letrada?
Aonde estão meus contemporâneos?

Lançados num destino famélico, serão os jovens intelectuais de um país triste? Jovens, os que frequentam postos subalternos, os que sofrem de um morticínio do futuro? Os lançados na fortuna, os que não terão família, nem legado, num país que lhes mata a sucessão?
Estarão fadados ao recanto eterno da felicidade do além-vida no aquém dos livros, o único lugar onde nas noites de desespero e angústia a esperança é reencontrada?

sexta-feira, 27 de dezembro de 2019

miragem

a R.
a noite é um sertão,
eu fecho os olhos.

a pele dourada alaranjada
& cheiros dos mais diversos,
gavião.
luar e solidão.

tu és isso.

uma imagem
mais linda
do que miragem.
tu fundas a paisagem
em alegria e dor.
Há gente de todo desfrute,
Há quem só teima em penar
Em tempos, em outras paragens,
Há gente que trama ao andar,
Há os que só beijam miragens,
Tristezas e o vil perdurar.

Já eu só quero o desfrute
De sua aleivesa, me escute,
Das noites e do nosso lar.

Há homens, há outro azimute,
Há loucos de todas idades,
Artistas, e em outro lugar,
Há gente que trama maldades,
E planos de muito enricar.
Também há poetas e abades,

Que se em seu muito perscrute
Mirassem a beleza, oh Rute,
Veriam em ti, e te iriam amar.

segunda-feira, 23 de dezembro de 2019

Pascal nos trópicos

Se inventassem algum jeitinho
De apequenar a vastidão
Ou se arranjassem algum caminho,
Uma estrada, um caminhão

Que travessando todo o espinho
Dessa Sua moita endiabrada,
Que dói e espeta, mata picada
Me acalentasse o coração.

Ou, se houvesse algum carinho,
A voz, alhures, uma oração,
ou algum santo, um diabinho,

Pra uma hora de adoração;
Talvez ao céu, oh meu painho,
Eu não chorasse a imensidão.



Não creio mais na filosofia do conceito,  leio apenas a vinculada à experiência.

Relatar a vida, relatar a experiência, como Agostinho ou Montaigne, refletir sobre o mundo como os historiadores clássicos, sobre Deus como Teresa de Ávila ou sobre a poesia como Rilke, sobre a filosofia como Conche; acabou se impondo para mim como a única alternativa de escrita.

Isso não é filosofia, nem poesia, nem literatura. Só são possíveis os Impromptus de Schubert, ou os Propos, de Alain.

sexta-feira, 29 de novembro de 2019

um caminho, um terreiro
um abrigo altaneiro,
um faceiro carinho,
um batuque ligeiro
um dobrado cadinho,
um luzir candeeiro,
um cantar, um canteiro,
um abraço sozinho,
um solitário cheiro,
é o bastante p'ra enfim
que anoiteça em mim.
Todorov diz: a beleza salvará
o mundo, vida e ódios terríveis;
há de ter salvação, outros mundos plausíveis,
por tua razão, lhaneza de malva;

Clareza morena, estrela terráquea,
Serpente de corpo, delgada, bonita,
O mundo anda triste, a gente aflita,
uns pobres gementes, e a terra ruína

se não fosse por ti, ah, se não fosse...