terça-feira, 16 de setembro de 2014

A História de Marcela( Parte 1)

A história que irei lhes contar, li-a há algum tempo num livro um tanto quanto raro. O autor, pelo que pude conferir, foi um sertanejo simples que vive de fazer relatos orais dos ocorridos em sua aldeia natal. Resolvi contá-la, pois que a sabedoria popular muitas vezes ensina mais do que dúzias e dúzias de tratados de homens que só sabem pensar abstratamente. É na aldeia natal deste homem que nossa história começa:

I-
A aldeia em que Marcela morava distava igualmente das pradarias do centro da país e do litoral esbranquiçado. Terra de gente brava e trabalhadora, dizia ela, que não passava as tardes sonhando com o além-mar, nem rezando a Santo Antônio pela chegada do amor. O dia era gasto cultivando a terra e suando o rosto. O sol a pino era a garantia de que a vida lhe era plena. Assim pensava.

E não poderia ser de outra forma. O próprio Amor – daquele que se diz com A maiúsculo - era sentimento raro naquelas localidades. Os homens, reunidos no bar, viviam repetindo os causos das curradas que haviam dado à força nas filhas desgarradas do rebanho de suas mães, de como as suas mulheres pediam para serem estapeadas, tanto na hora do coito, quanto quando alguma bobagem faziam, também de como o amor havia sido inventado pelas mulheres a fim de segurarem o ímpeto bravio e macho dos homens-touro. O amor é isso, diziam eles, elas se agarrando a nós.

As mulheres, reunidas em torno do riacho no qual lavavam as roupas e os corpos do mesmo suor fedorento exalado pelos esposos, diferentemente das damas da cidade grande – com seus sonhos bovaryanos –, trocavam informações acerca dos seus casamentos de sucesso, porém não felizes. Elas sabiam que o amor ali significava apenas calhar de encontrar um homem a quem pudessem juntar os trapos e casar, compartilhar, assim, a imundice da tristeza com a ilusão da felicidade e sentir, no íntimo dos corpos, todas as noites, aquela dor prazerosa de um pedaço de carne estranho rasgando as suas entranhas. Não tão estranho, por certo. Os seus homens tornavam-se, pelo costume, extensões de seus corpos fracos. Naquele lugar, elas sabiam, o amor era unicamente uma garantia contra a solidão. O amor é isso, elas diziam, eles entrando em nós.

Surgiu certo dia, Marcela. Parida do ventre de uma analfabeta – por isso ignoramos o nome, não existem registros - e criada por um homem bruto que rascunhava sílabas, ela floriu como há muito árvore ou flor alguma florira na região. Contam que seu nome veio de um viajante: passava na frente do local e predizendo seu futuro livre de pastora, comentou ao seu velho pai que seu nome haveria de ser Marcela, como a infeliz pastora que atormentara Crisóstomo, pois seria ela quem despertaria o Amor naquela aldeia. O pai, crente como dizem ser os aldeões, não se pôs a duvidar e resolveu lhe botar o nome de Marcela. Pensava que o Deus haveria de se vingar se assim não o fizesse e que poderia, ainda mais, ser o próprio Deus aquele viajante misterioso que entrou aqui em nossa história e nela não aparecerá mais.

Aos que não puderam ler Dom Quixote, cabe recordar que o jovem pastor se suicida após ver-se recusado pela dona de formosa beleza. Deixa uma narrativa dizendo caber a ela inescusáveis acusações: como pode um homem ver-se diante de tão bela mulher e não se apaixonar perdidamente, como pode uma mulher recusar um homem que a ama com tanto amor. Em nossa aldeia, todavia, não seriam entendidas tais palavras, visto que o amor era formalidade, uma mera escusa para que os corpos se tocassem e as mesas fossem compartilhadas.

Nada muito distante do que dizem ocorrer nas cidades. Houvera um tempo em que escolher uma moça ou um belo rapaz para saciar as curiosidades da carne era um símbolo de desapego das tradições, não há dúvida. Hoje, pelo que se relata, o medo do Amor é tão grande que nem o medo da solidão faz querer algo mais do que corpos. Ele se cura com outros medos e drogas variadas. Anteriormente, a única droga era o casamento. Hoje, o sexo é um ótimo antídoto contra o Amor.

Marcela, criada sozinha no labor próprio do pastoreio, ao seu redor animais diversos, sempre disso soube. Por isso, desde que comichões em sua carne começaram a brotar, desejando outra pele contra a sua, foi tentar primeiro encontrar o Amor para que pudesse dar algum significado àquela sensação. Se não fizer isto, dizia, igualar-me-ei às cabras e outros animais domésticos nas suas ânsias de prazer. O primeiro Amor que encontrou, naturalmente, foi no corpo de outra mulher. E assim Marcela começou a sua predestinada jornada de trazer as dores e prazeres àquela aldeia tão infeliz. Por isso, acaba aqui o primeiro capítulo.

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